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quarta-feira, 6 de março de 2013

Um pouco de justiça

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa.
A morte de Hugo Chávez Frías, presidente da Venezuela eleito seguidamente por quatro mandatos, obriga os jornais brasileiros a lhe fazer alguma justiça. Os cadernos especiais que engordam as edições dos diários na quarta-feira (6/3) trazem conteúdos tão diferentes da imagem que a imprensa nacional construiu para ele ao longo dos últimos anos, que o leitor distraído haverá de pensar que se trata de personagens diferentes. Vivo, Chávez era pintado como um ditador populista; morto, é quase um estadista revolucionário.

Articulistas dos grandes jornais lhe fazem epitáfios generosos nos mesmos espaços onde costumavam demonizar seu projeto de governo. Tabelas e infográficos revelam que, ao contrário do que se dizia, ele não afundou a Venezuela num abismo econômico; ao contrário: reduziu a pobreza, conteve o desemprego, controlou a inflação e deslocou seu país de uma posição subalterna em geopolítica e o colocou como protagonista de grandes questões mundiais. Não é pouco para quem, enquanto viveu, foi apresentado como irresponsável, autoritário, inimigo das liberdades e incompetente como chefe de Estado.

Uma comparação entre os jornais oferece alguma vantagem à Folha de S. Paulo, por duas razões muito simples: o jornal paulista trocou parte do opiniário por informações objetivas e a principal articulista convidada a fazer o perfil de Chávez, Julia Sweig, teve a humildade de reconhecer, em seu texto, que ainda é cedo para análises mais corretas do que ele representou para a Venezuela e a América Latina. “Os historiadores que se debruçarem sobre o período dentro de algumas décadas vão dispor de ferramentas mais amplas para avaliar mais profundamente o legado de Chávez”, diz a articulista.

E qual seria esse legado? Segundo o Estado de S.Paulo, antes de Chávez o Produto Interno Bruto da Venezuela era de menos de US$ 200 bilhões; em 2012, o PIB venezuelano chegou a US$ 400 bilhões. De acordo com a Folha, a inflação, que Chávez herdou num patamar acima de 35% ao ano, baixou para 23,2%, apesar da crise de 2008. E o desemprego, que era de 11,3% quando ele assumiu, caiu para 8%.

A dívida pública subiu e a violência, vista pelo número de homicídios por cem mil habitantes, aumentou muito, mas há controvérsias derivadas da melhoria nos registros policiais nesse período.

Conquistas sociais

De acordo com a visão oferecida pela Folha, Hugo Chávez foi um homem do seu tempo, radicalmente fiel ao conjunto de valores que dominaram a política latino-americana neste início de século: crescimento com inclusão social, consenso em defesa da democracia, e independência em relação à diplomacia condicionada aos interesses de segurança dos Estados Unidos.

Por conta dessa política que se opunha aos dogmas do chamado liberalismo econômico, a imprensa se vê obrigada a registrar que, em seus três mandatos integrais, a pobreza extrema caiu de 20,3% para apenas 7% da população venezuelana, um resultado superior ao fenômeno do resgate social obtido pelo Brasil no mesmo período.

Outro aspecto interessante nos indicadores apresentados pela Folha é o conjunto de gráficos sobre o crescimento do PIB nas principais economias sul-americanas, que mostram como a Venezuela, por depender exclusivamente do petróleo, sofreu o maior impacto da crise financeira de 2008, mas reagiu de maneira mais consistente do que a maioria dos países da região.

Os gráficos publicados pelo Estadão não deixam tão claras as conquistas do líder controverso e o Globoapenas cita alguns desses números em um texto de sua correspondente. O jornal carioca destaca a estatização da economia venezuelana, mas admite que “em termos de indicadores, de fato, a revolução bolivariana conseguiu reduzir de forma expressiva a pobreza”.

No mais, a imprensa brasileira discute se ele foi um caudilho, um líder populista ou um revolucionário; destaca seu temperamento histriônico, relata sua guerra com os grandes conglomerados de comunicação da Venezuela e investe em adivinhações sobre o futuro do chavismo.

Restam, então, algumas questões. Uma delas: se Chávez produziu mudanças tão radicais e positivas na economia e na sociedade venezuelanas, por que suas conquistas foram ocultadas pela imprensa brasileira enquanto ele viveu?

Se o objetivo do desenvolvimento econômico é promover crescimento com redução das desigualdades – e ele conseguiu isso sem ameaçar a democracia, como destacam os jornais –, por que razão foi demonizado desde que chegou ao poder?

A imprensa só faz justiça nos obituários?

2 comentários:

maria marçal disse...

Bom dia
Concordo que se deva aguardar para dimensionar o legado real deste ditadista.
Particularmente não credito a índices um bom ou mal governo. Acredito, como no Brasil, na realidade dos fatos vivenciados por um povo. Dizer que o PIB aumentou, enquanto páginas da história nos mostram pobreza, miséria, corrupção e 'autoritarismo velado' não me trazem definições.

Maria Marçal - Porto Alegre - RS

Anônimo disse...

Prezada Governadora, uma das abordagens sobre o assunto das mais lúcidas é a de Rubens Ricupero, sob o título: "O legado de Chavez" - no link: http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/95414/

Excertos do artigo de Ricupero:

"Hugo Chávez passará à história como a manifestação mais inconfundível da afirmação de um ator político novo na América Latina: as periferias das metrópoles nascidas da urbanização explosiva das últimas décadas. Ele foi um dos primeiros a intuir que essas periferias não se sentiam representadas pelos partidos tradicionais dado o fracasso destes em melhorar a vida das maiorias. Preenchendo esse vácuo, seu gênio foi tentar dar às periferias expressão própria, canalizando assim o descrédito desses partidos e instituições para um movimento de redistribuição imediata de benefícios tangíveis aos mais carentes: saúde, educação pública, moradia, alimentos."

...............

"O desaparecimento de Hugo Chávez não significará a extinção do movimento de genuína base social que fundou, da mesma forma que não se apagaram os legados de Getúlio Vargas, Juan Perón ou Haya de La Torre. Não é impossível que, num primeiro momento, sua morte gere (como no suicídio de Getúlio ou na morte de Néstor Kirchner) um efeito de simpatia em favor dos sucessores. É o que parece ter ocorrido nas eleições regionais de dezembro, em que a oposição só conseguiu manter três dos sete governos estaduais que detinha. O desafio do chavismo virá mais adiante, devido ao seu fracasso na economia e na efetivação de muitas das reformas que tentou introduzir."

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"Ainda assim, seria pecar por superficialidade subestimar Chávez devido a seus dotes histriônicos ou descartá-lo como mais um caudilho populista latino-americano, ignorando a profunda aspiração de transformação social e cultural à qual buscou dar expressão. A ascensão dos setores populares próximos da linha de pobreza, sua exigência de dignidade e vida melhor, continuarão a alimentar na Venezuela e na América Latina movimentos que só se esgotarão quando se realizar sua promessa. Como o surgimento de um ator novo acarreta mudanças na posição de outros, é provável que isso gere desestabilização por décadas como aconteceu na Europa do século XIX.

Não compreender por que milhões de venezuelanos rezam por Chávez é repetir a experiência narrada por Ernesto Sabato sobre a queda de Perón em 1955. O escritor comemorava com amigos intelectuais e profissionais liberais o fim do ditador que envergonhava a Argentina até que, em certo momento, teve de entrar na cozinha. Lá, todos os empregados choravam..."