Por Eric Nepomuceno, na Carta Maior
Pouco depois das três da tarde da terça-feira, 11 de setembro de 1973, começaram a surgir filas de jovens em alguns pontos do centro de Córdoba, no interior da Argentina. Alguém havia posto mesas e um atendente numa cadeira plantada na calçada. Os jovens mostravam documentos para comprovar que eram maiores de idade. A mesma cena se repetia na frente de alguns sindicatos. Havia, além do mais, rádios ligados em alto volume, transmitindo informações desencontradas sobre o que estava acontecendo no Chile.
Eu havia saído de uma longa entrevista como Agustin Tosco, o dirigente do sindicato dos eletricitários, o líder mítico do ‘cordobazo’ de 1969, uma rebelião popular contra a ditadura do general Juan Carlos Onganía, que acabou caindo um ano depois só para ver seu substituto, Alejandro Lanusse, general como ele, acabar abrindo as portas para a volta de Perón e o fim da ditadura.
Naquele setembro de 1973, a tensão era alta na Argentina, e especialmente em Córdoba, cidade de sindicalistas e estudantes combativos e de classe média conservadora.
Lembro de ter chegado perto de uma daquelas mesas e ter ouvido as notícias confusas. Perguntei a um estudante o que estava acontecendo, e ele respondeu, firme: ‘Estão tentando derrubar Salvador Allende, e somos voluntários para viajar de imediato, cruzar a fronteira e defender o Chile’.
A fronteira estava a uns 700 quilômetros de distância, e Santiago, onde o golpe estava acontecendo, a uns mil. Ninguém parecia saber como chegar até lá, e muito menos o que faria se chegasse. Fala-se de uma resistência firme, e havia a certeza da necessidade de se somar a ela com urgência.
Eram jovens voluntariosos, que não sabiam que naquela altura o Chile estava totalmente bloqueado pelos golpistas, ninguém entrava, ninguém saía. Não sabiam que desde a noite anterior as tropas se movimentavam de vários pontos do país rumo a Santiago, nem que a Marinha havia mandado barcos para se juntar à Operação Unitas, encabeçada pela força naval dos Estados Unidos, nem que Augusto Pinochet, chefe do Exército, havia aderido na tarde da terça-feira, dia 10, ao golpe que passou a encabeçar.
Ninguém, ali em Córdoba, sabia que naquela altura o Palácio de la Moneda havia sido bombardeado, que centenas e centenas de pessoas estavam sendo presas, que muita gente já tinha sido morta.
E, finalmente, naquela altura ninguém sabia que o próprio Salvador Allende estava morto. Se matou para cumprir sua palavra de não se render, de não renunciar, de não sair vivo de La Moneda.
Esta a imagem que carrego desde aquela terça-feira de trevas: uma espécie de ingenuidade juvenil e coletiva, numa geração que acreditava piamente que era possível tocar o céu com as mãos.
O drama chileno comoveu o mundo. Junto com Allende e seu governo da Unidade Popular morreu o sonho de uma experiência inédita: fazer, a partir de um governo democrático, a transformação profunda de uma sociedade injusta e desigual, e promover, ao amparo da Constituição, a igualdade e a verdadeira justiça social sem sacrificar a liberdade.
A América do Sul vivia, como de costume, tempos de contradição. Havia uma ditadura perversa no Brasil desde 1964, e desde poucos meses antes – junho de 1973 – a democracia tinha sucumbido no pequeno Uruguai, que se igualava ao vizinho Paraguai.
Na outra margem do rio da Prata a Argentina vivia as incertezas de um peronismo eternamente dividido num sem-fim de tendências, uma direita recalcitrante, uma esquerda polarizada. Um céu de incertezas cobria o país que mal acabava de sair de uma longa ditadura.
A Bolívia, depois da tentativa de mudar sua própria e trágica realidade durante o curto e tumultuado período de Juan José Torres, um militar honrado e progressista, vivia debaixo do jugo sórdido de outro general, Hugo Bánzer.
No meio desse confuso cenário, o sonho de Allende cativava esperanças. Como bem disse Gabriel García Márquez logo depois do golpe de Pinochet e sua camarilha, o que aconteceu no Chile não diz respeito apenas aos chilenos, mas ao mundo inteiro.
De pouco ou nada vale destacar, passados 40 anos daquela terça-feira cruel, que o mundo vivia o auge, ou um dos tantos auges, da Guerra Fria. De pouco ou nada vale reconhecer que hoje o cenário mundial é outro que outros são os tempos: o que aconteceu no Chile passou para a história como algo que aconteceu, sem remédio, a todos os homens daquele tempo, e ficou em nossas vidas para sempre.
Pode parecer distante para as novas gerações. Mas, de alguma forma, elas também padecem os efeitos e consequências daqueles tempos de sonhos truncados e esperanças sufocadas.
O golpe chileno significou uma ruptura política e social, uma violação da Constituição que no Chile era algo insólito. Ao contrário dos vizinhos, no Chile o respeito às leis, às instituições e, principalmente, à Constituição, havia feito do país de Allende uma das democracias latino-americanas mais sólidas e vigorosas. O mais irônico é que ele quis mudar a sociedade mantendo o que era tradição no Chile: o respeito às instituições.
O golpe foi a etapa final de um lento e corrosivo processo de polarização entre sua determinação de transformação e a rançosa resistência dos que queriam preservar um quadro de altos benefícios das minorias mantendo o profundo abismo que os distanciava das maiorias.
Num quadro de disputa por influência e poder na América Latina, para os Estados Unidos o êxito da experiência chilena seria um perigo. Uma transição pacífica ao socialismo era tudo que Richard Nixon jamais admitiria. Nem ele, nem seu moralmente abominável secretário de Estado, Henry Kissinger. Foi ele, Kissinger, o verdadeiro gênio dos males padecidos não apenas pelos chilenos, mas por todos os latino-americanos daquele período de sombras perversas.
Agora, tudo isso é história. Passaram-se os tais 40 anos, o mundo mudou, o Chile mudou, a América Latina mudou.
Mais que história, porém, isso tudo deve ser memória viva. Porque as transformações sonhadas por Allende e sua Unidade Popular continuam sendo sonhadas por milhões de latino-americanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário