Por Roberto Amaral, na CartaCapital
O baronato das comunicações anda tenso, preocupado. É fácil
de perceber um certo nervosismo apenas folheando as revistas e os jornalões,
pelo que dizem e pelos grandes espaços de silêncio. Assusta-os a CPI do
Cachoeira, porque já revelou as relações pelo menos perigosas entre a grande
imprensa e o crime organizado – a ponto de interferir (ditando linhas de
‘investigação’) na pauta de uma grande revista semanal. Ou, dito de outra
forma, sem amenizar a gravidade dos fatos, sabe-se que muitas reportagens
“investigativas” foram levadas a cabo para atender a interesses nada republicanos
de um criminoso hoje na cadeia e à espera de processo e julgamento.
Na bacia das almas, empresas e meliante (também ele
empresário…) já entregaram aos leões o Catão do Serrado, do qual se serviram
para defender interesses indefensáveis, e atacar os adversários de sempre. O
grande paladino da moral e dos bons costumes enquanto no Senado e nas folhas
brandia a espada na luta cívica contra a corrupção, nos desvãos da Esplanada
(nela incluídos tribunais superiores), advogava os negócios do crime, em uma
malha tão profunda que talvez jamais venha a ser de todo destrinchada.
Seja por isso, seja por aquilo, as grandes empresas de
comunicação olham de lado, desconfiadas, para a CPMI. Contestam como insinceros
os motivos de sua convocação e anunciam todo santo dia, como se estivessem
fazendo uma denúncia, mas na verdade exprimindo um desejo, o inevitável
fracasso dela. Acham normalíssimo o procurador geral da República, beneficiando
criminosos, quedar-se três anos com um inquérito em sua gaveta, e o aplaudem
por se negar a comparecer à comissão para prestar os esclarecimentos que deve
ao país. Mas seus donos ficam eriçados, orelhas em pé, pelo arrepiado, garras
expostas, quando deputados “insolentes” (e logo acusados de estar a serviço dos
“mensaleiros”) pretendem ouvir, não o poderoso Cidadão Kane, mas o simples
preposto que fazia a intermediação entre o crime e a revistona.
Por práticas similares, o grande Ruppert Murdoch teve de
prestar satisfações ao parlamento britânico, e ninguém, nenhum jornal, nem lá
nem aqui, arguiu ofensa à liberdade de imprensa. Aqui é tamanho o incômodo que
Roberto Civita foi brindado com editorial de um grande matutino de empresa
“concorrente”, no qual se afirma que ele não é Murdoch. E não é mesmo!
Jornalista estrangeiro especialista em “ligações perigosas” é chamado para
falar em seminário e explica que não há nada de mais repórter e fonte criminosa
andarem conluiados.
A inquietação também ocorre relativamente à Comissão da
Verdade, finalmente instalada. No dia mesmo da solenidade no Palácio do
Planalto os editoriais clamavam contra os “riscos de revanchismo”, e os mais
audaciosos já defendiam a “bilateralidade da apuração”, ou seja, “a
investigação de atos praticados por grupos de esquerda que se opuseram ao
regime militar”. Outros, estão preocupadíssimos em assegurar-se de que não
haverá punições. Quer saber a grande imprensa se o Ministério Público pode
utilizar os resultados das investigações para tentar condenar militares
(absoluta indiferença relativamente aos criminosos civis) “que cometeram
violações”. No Globo do dia 17, o coronel da reserva João Batista Fagundes,
representante das Forças Armadas na Comissão de Mortos e Desaparecidos
Políticos, é chamado a falar:
“A Comissão da Verdade é oportuna mas não pode se enveredar
pela questão criminal dos agentes do passado. A Lei da Anistia está em vigência
e a própria lei que criou a comissão não prevê condenações. No meio das Forças
Armadas, o receio é que se abram processos já albergados sob o pálio refletor
da anistia.”
Em editorial do dia 12, o mesmo jornal afirma que “a escolha
de nomes acima de qualquer suspeita para a Comissão da verdade”(…) ‘…serve de
garantia de que a Comissão não extrapolará os limites da Lei da Anistia, já
referendada pelo Supremo”.
Esses temores e esses condicionantes talvez expliquem tanto
a demora na aprovação da lei (ora, já lá se vão 27 anos desde quando o último
general presidente deixou o Palácio do Planalto pela porta dos fundos!), quanto
a demora na escolha (elogiada por gregos e troianos) de seus integrantes. Não
podendo impedir a apuração (mas tendo podido nesse longo período destruir
documentação e provas) busca-se limitar ao máximo o alcance da Comissão. O
intuito declarado de impedir o eficaz funcionamento da Comissão já ficara claro
quando o legislador estipulou o período de apurações começando em 1946,
misturando democracia com ditadura, e alargando o objeto propositalmente, na
expectativa de que assim tão amplo ele se tornasse inalcançável, donde,
apuração nenhuma.
O que a nação deseja e quer é conhecer os crimes praticados
pelo regime militar, e esses crimes começam com a própria ruptura democrática
de primeiro de abril de 1964. Naquele momento as Forças Armadas, que como
instituição existem para garantir a integridade territorial, a soberania
nacional e a segurança de nosso povo, aquele que paga seus salários, soldos e
tudo o mais, traíram seu chefe supremo, rasgaram a Constituição e deram início
a uma escalada de arbítrios que surrupiou pela violência centenas de mandatos
eletivos, milhares de empregos, cortou carreiras profissionais, sepultou
esperanças, exilou e desterrou brasileiros, suprimiu a liberdade física de
milhares de cidadãos e transformou em letra morta direitos e garantias
individuais, a começar pelo direito à expressão livre, e impôs a indignidade da
censura prévia, até de livros científicos. Tudo o mais que a história contará é
mera consequência. Devem elas, sim, pelo que fizeram, um pedido público de
desculpas à Nação, para voltarem a desfrutar do respeito que merecem pelo
exercício das suas nobres funções. Estará assim, aberto o caminho para a
superação de desconfianças mútuas que ainda estão a toldar, pelo silêncio-tabu,
o congraçamento entre civis e militares.
Tudo será possível, menos censurar a História, menos
reescrevê-la, menos adulterá-la, pois o tempo, sempre, trará a lume a verdade.
Assim, também se contará a História, a aliança entre empresários da
comunicação, políticos e militares na preparação do golpe. A história também
contará o papel de uma imprensa que, com raríssimas exceções, participou da
conspiração, defendeu o golpe e os atos tenebrosos que ele desencadeou, até se
ver diante da inevitabilidade de aderir ao irresistível movimento de massas
pela democracia que tomou impulso a partir de 1974. Mas isso foi opção
ideológica e não passará pela peneira da Comissão.
A palavra final, porém, não será dada nem pelo governo, nem
pela imprensa, nem pelos militares, mas pela sociedade, apesar da imprensa. Se
a sociedade cruzar os braços, der-se por satisfeita com a simples constituição
da Comissão, pouca esperança teremos de resultados satisfatórios. Esta é a hora
de as organizações civis voltarem à liça, reaglutinarem-se os perseguidos, os
torturados e as famílias dos assassinados. Da força de sua demanda dependerá a
profundidade do que será esclarecido.
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