Por Paulo Moreira Leite - Publicado na Revista Época
Confesso que não dá para ficar espantado com as
delinqüências do bicheiro Carlinhos Cachoeira. Sem ser preconceituoso,
pergunto: o que se poderia esperar de um contraventor a não ser que se
dedicasse à contravenção? Que fosse rezar ave-maria depois de pagar aposta no
jacaré e no leão?
Mas há motivo para se espantar com o sucesso de Demóstenes
Torres. Como ele conseguiu enganar tantos por tanto tempo? A resposta não se
encontra no próprio Demóstenes, mas em quem se deixou ser enganado. O senador é
um produto típico do radicalismo anti-Lula que marcou a política brasileira a
partir de 2002. A polarização política criada em certa medida de modo
artificial foi um campo fértil para políticos sem programa e aproveitadores
teatrais.
Demóstenes contribuiu com sua veemência e sua falta de
freios para criar um ambiente de intolerância política no Congresso, reeditando
o velho anti-comunismo da direita brasileira, da qual o DEM é um herdeiro sem
muitos disfarces. Num país onde a oposição se queixava de que não havia oposição,
Demóstenes apresentou-se. Contribuía para estimular o ódio e o veneno, com a
certeza de que nunca seria investigado. Aliás, não foi.
Caiu na rede de seu amigo e parceiro Cachoeira. Se aquele
celular fajuto de Miami fosse mesmo à prova de grampos, é provável que até hoje
o país estivesse aí, ouvindo Demóstenes e seus discursos… Quem sabe até virasse
uma estrela da CPI…sobre Carlinhos Cachoeira.
Nunca se fez um balanço da passagem de Demóstenes pela
secretaria de Segurança de Goiás, nunca se conferiu a promessa (doce ironia!)
de acabar com o jogo do bicho no Estado nem as razões de seu afastamento do
PSDB de Marconi Perillo.
Demóstenes dava até entrevistas contra as cotas e escrevia
textos citando Gilberto Freyre. Pelo andar da carruagem, em breve seria
candidato a Academia Brasileira de Letras e um dia poderíamos ouvi-lo tecendo
comentários sobre a obra de Levi-Strauss, sobre a escola austríaca de economia…
O senador foi promovido, tolerado e bajulado por uma única razão: necessidade.
Nosso conservadorismo está sem quadros e sem votos. Lembra a conversa de que
“faltam homens, faltam líderes”? Vem desde 64…
A dificuldade de construir um programa político autêntico e
viável para enfrentar a competição pelo voto está na origem de mais um embuste.
Já tivemos Jânio Quadros, Fernando Collor… Felizmente Demóstenes não chegou tão
longe.
Mas todos foram mestres na arte de esconder seu real
programa político e oferecer a moralidade como salvação suprema. O carinho, a
atenção, a boa vontade com que Demóstenes foi tratado mostra que teria um longa
estrada pela frente. Não lhe faltavam sequer intelectuais disponíveis para
oferecer um verniz acadêmico, não é mesmo?
Há um problema de origem, porém. A história da
democratização brasileira é, basicamente, a história da luta da população mais
pobre para conseguir uma fatia melhor na distribuição de renda. Este era o
processo em curso antes do golpe que derrubou Jango. A luta contra o arrocho e
contra os truques para escamotear a inflação esteve no centro das principais
manifestações populares contra o regime.
Desde a posse de José Sarney que o sucesso e o fracasso de
cada presidente se mede pela sua competência para para responder a esse anseio.
Aquilo que os economistas chamam de plano anti-inflacionário, estabilização
monetária e etc, nada mais é, para o povão, do que defesa de seu quinhão. O
Cruzado e o Real garantiram a glória e também a desgraça de seus criadores
apenas e enquanto foram capazes de dar uma resposta a isso. Essa situação
também explica a popularidade de Lula, ponto de partida para o Ibope-recorde de
Dilma.
E aí chegamos à pior notícia. O conservadorismo brasileiro
aposta em embustes porque não quer colocar a mão no bolso. Quer votos mas não
quer mexer – nem um pouquinho – na estrutura de renda. Quer embustes, como
Demóstenes.
Fiquem atentos. Quem sabe o próximo Demóstenes apareça na
CPI do Cachoeira, do Cavendish … e do Demóstenes. O conservadorismo preocupa-se
apenas com seu próprio bolso. Para o povo, oferece moralismo.
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