Por Paulo Teixeira, deputado federal (PT-SP)
A dimensão do Marco Civil da Internet, aprovado pela Câmara na semana
passada e na agenda de votação do Senado, foi obscurecida pelas duas
semanas de intensa queda-de-braço entre o governo e parte de sua base
parlamentar.
Não faz justiça ao Marco Civil apontá-lo como a
razão do conflito – cujas motivações são meramente eleitorais – ou
simplesmente como uma vitória do governo sobre rebeldes. O projeto
aprovado é muito mais do que isso: é a vitória de uma concepção
libertária da Internet que desponta como referência mundial de
regulação da rede, e uma proposta que derrotou a ameaça obscurantista
que vagou pelos corredores do Congresso por quase 15 anos. Dizer que o
projeto aprovado limita a liberdade na rede, como o líder de um partido
de oposição chegou a argumentar no encaminhamento da matéria para
negar os oito votos de seu partido à lei, é desinformação ou má-fé.
O
texto aprovado na semana passada pela Câmara foi o produto de uma
grande articulação nacional de parlamentares, movimentos sociais e
figuras envolvidas na defesa de uma legislação que garantisse a
neutralidade da rede (não discriminação do tráfico de conteúdos) e
direito à privacidade do usuário e inviolabilidade e sigilo de suas
informações, e que passou a contar com o apoio dos governos
progressistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
O
movimento final, e vitorioso, foi uma reação à aprovação pelo Senado,
em 2008, de substituto do então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) a
projeto apresentado em 1999, na Câmara. O relatório do senador
criminalizava praticamente todo o uso da internet, inclusive uma banal
troca de e-mails. A proposta do tucano abrigava reivindicações de bancos
e empresas de cartões de crédito e o lobby de empresas de certificação
digital – e o senador mineiro levou as exigências de segurança a um
extremo tal que o próprio uso da rede estaria inviabilizado, se sua lei
fosse aprovada. O relatório Azeredo era uma mera definição de crimes,
que passava ao largo dos direitos de usuários e ignorava o artigo 5º da
Constituição – aquele que define com clareza, desde a Constituinte de
1988, o direito do cidadão à informação, à privacidade e à igualdade.
Na
Câmara, eu e um grupo de deputados do PT, do PCdoB, do PSB e do PSOL,
bloqueamos a votação do projeto aprovado no Senado e nos unimos a
setores da sociedade que reivindicavam um Marco Civil da Internet, em
contraposição a uma lei de tipificação de crimes digitais. Para enterrar
o AI-5 digital de Azeredo, adotamos a estratégia de obstruir a votação
do projeto na Câmara e, simultaneamente, construir uma alternativa ao
texto que vinha do Senado: uma lei equilibrada que punisse apenas os
atos praticados por criminosos na internet. Dessa articulação, resultou
um projeto para punir crimes da internet de minha autoria, que se
tornou uma lei perfeitamente compatível com o Marco Civil, cujos termos
começavam a ser construídos pela sociedade civil.
Em 2009, o
presidente Lula acatou a reivindicação dos movimentos sociais, feitas
no Fórum Internacional de Software Livre, e orientou oficialmente sua
bancada na Câmara a barrar o projeto Azeredo e iniciar um processo de
debate com a sociedade para definição de um texto que fosse, de fato,
um marco regulatório. Por meio de ferramentas digitais, o Ministério da
Justiça coordenou uma ampla consulta pública sobre o tema. Em 2011,
quando eu era líder do PT na Câmara, o governo enviou o projeto do Marco
Civil para a Câmara. Desde então, o deputado Alessando Molon (PT-RJ)
conduziu um trabalho de relator que consistiu em mediar entendimentos
para produzir um texto final que fosse o mais inclusivo e democrático
possível.
Este é um trabalho que se estendeu ao longo dos
últimos cinco anos. Nesse período, o Brasil caminhou perigosamente de
uma Lei de Crimes da Internet, que praticamente sepultaria o livre
acesso dos usuários à rede, para uma Constituição da Internet, que
garantirá os direitos e definirá deveres do usuário. A proposta de
Azeredo, aprovada na madrugada do dia 10 de julho de 2008 pelo Senado,
tornava crime obter ou transferir dado ou informação disponível em
redes de informação sem autorização da fonte, obrigava a identificação
dos usuários que trafegassem por serviços brasileiros e até tornava
crime a propagação de vírus, mesmo sem intenção dolosa. O projeto
relatado por Molon, e aprovado agora na Câmara, tem como ponto
fundamental a neutralidade da rede, o que impede, por exemplo, que
provedores de acesso discriminem usuários mais pobres, impedindo o
acesso a conteúdos que os mais ricos tenham acesso.
Essa
virada democrática na regulamentação da internet brasileira dará também
uma enorme contribuição ao debate internacional sobre o tema. Quando
relator da matéria, o senador Eduardo Azeredo reivindicava que o seu
projeto fosse o modelo de regulação da web dos países vizinhos. Hoje, a
referência será uma lei democrática.
Dias antes da votação do
Marco Regulatório pela Câmara, na semana passada, o fundador da
internet mundial, Tim Bernes Lee, disse que Marco Civil da Internet
brasileiro, se aprovado, seria "o melhor presente possível para os
brasileiros e para os usuários da web em geral". "O relatório reflete a
internet como deveria ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada,
onde os usuários são o motor da colaboração e inovação". Além disso,
salientou, "a lei garante direitos humanos como privacidade, cidadania e
a presença da diversidade e do propósito social da web".
O
legado da experiência participativa para a construção do Marco
Regulatório da Internet, e a própria lei dela resultante, será de grande
contribuição para o Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da
Internet, que ocorrerá nos dias 23 e 24 de abril, no Rio. O encontro
ocorrerá no Brasil por solicitação da organização não-governamental
ICANN, órgão internacional responsável por estabelecer regras de uso da
internet mundial, e em função das posições firmes assumidas pela
presidenta Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU, contra as práticas
de violação de informações de governos e cidadãos pelos Estados
Unidos.
O Brasil passa a ser um protagonista no debate sobre a web
internacional, graças ao fato de ter enfrentado os problemas impostos
pelas novas tecnologias aos governos e aos cidadãos, sem que tenha se
deixado seduzir por legislações restritivas de liberdade.
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